7.2.06

em que espelho ficou perdida a minha face


Em que espelho ficou perdida a minha face?
Cecília Meirelles


Acordei hoje, olhei-me no espelho do banheiro e senti, acompanhado por uma náusea, um estranho sentimento de saturação. Sem conseguir localizar exatamente a origem dessa sensação, tornei a olhar e compreendi – aquela face era a mesma que vejo diariamente há mais de meio século e, ao fazer essa constatação, não pude deixar de exclamar: que saco!
É claro que as inevitáveis mudanças estavam lá em rugas inclementes, olheiras, falta de definição no contorno da face, cãs, em lugar dos negros cabelos, mas basicamente era o eu de sempre.
Por que razão não se pode acordar, nem digo a cada dia, mas a cada mês com um diferente rosto? Seria talvez mais divertido. Quem é você? –perguntaríamos uns aos outros, tecendo comentários com os mais íntimos – Meu Deus, este mês você está muito feia, bem diferente daquela misse do mês passado! Definitivamente essa pele branca e o cabelo loiro não combinam com sua personalidade... Fazer o quê? – responderíamos – talvez no mês que vem eu esteja irresistível!
Os casamentos talvez durassem mais, pois mudaríamos de marido, ou de mulher, a cada mês, permanecendo com o mesmo.
É eu sei, seria também bastante arriscado; Você teve a coragem de fazer sexo com minha melhor amiga, seu safado? Mas eu juro, pensei que era você! Afinal como eu podia saber? Estava na época de você mudar de cara!
Temos que considerar ainda que seria desagradável ter que ver desaparecer aquele rosto lindo de janeiro do qual gostamos tanto, ou ter que passar dezembro com jeito de bruaca, isso é verdade. Filmes e novelas teriam apenas um mês de prazo para terminar, pois seria difícil identificar as personagens, caso os atores mudassem de fisionomia repentinamente no meio da história.
Por outro lado, não haveria monotonia, jamais ficaríamos saturados. A expectativa traria um sabor de aventura e novidade às nossas vidas. Além do mais não se gastaria tanto dinheiro em cirurgias plásticas e cosméticos, pois, como camaleões faciais, a renovação seria gratuita e poderíamos empregar esse capital em algo mais útil.
De repente, me vi rindo. Quanta bobagem! Apesar dos pesares, aquele rosto que eu conhecia tão bem era meu, a minha marca, a minha identidade física. Novo, ou velho, alegre ou triste, descansado ou exausto era meu e de mais ninguém.
Ao contrário de Cecília, minha face não ficou perdida no espelho e me senti feliz por isso.

6.2.06

Eu sei que devia, mas não consigo

“Pô, fessora, por que não pode escrever chato na redação? Por que é que você escreveu aborrecido? Não é a mesma coisa? Que troço mais careta!”
Pois é, eu sou assim em relação à nossa língua—essa belíssima, riquíssima e expressiva Língua Portuguesa—bem careta, caretona, caretíssima! E o que é pior, não consigo fazer de conta que não sou. Fazer o quê? Afinal, sou literalmente do século passado.
Eu sei que devia incorporar a linguagem livre, criativa, rápida e moderna de nossos jovens_ e de alguns já não tão jovens assim_ mas, infelizmente para mim, não consigo.
Eu sei que devia dizer “que porra é essa, cara?”, mas não dá, e só pergunto: “o que é que está acontecendo aqui? Ou “o que foi que você fez?, ou disse?”. Assim, bem pouco criativa, bem careta.
Eu sei que devia perguntar “esta merda é tua?”, mas não posso e, caretona, sai a pergunta “isto é teu?, ou te pertence?" Desse jeito estranho.
Eu sei que devia avisar “nenhum filho da puta mete a mão aqui, falô?”, mas fico travada e, então, caretíssima, só sou capaz de dizer “por favor, ninguém mexa aqui”. Bem assim, reprimida, oprimida.
Eu sei que devia achar que o “passeio foi bom pra caralho”, mas não sai e, lamentavelmente, digo que foi fantástico, excelente, maravilhoso, uma delícia. Assim mesmo, antiquada, fora de moda, velha, sem a menor criatividade.
Finalmente, eu sei que devia saber que “se neguinho não sacar a porra desta paradinha aqui, vai dar uma merda do caralho e eu vou me fuder”, mas nem tento e assim, “caso este texto não seja bem compreendido, podem advir conseqüências adversas e eu posso ser severamente criticada ou sofrer sérias represálias” o que, convenhamos, será o máximo da caretice em tempos tão avançados e livres.
Rosa Maria Ferrão