17.1.15

Dizer é fácil. Compreender ou fazer-se entender, nem tanto

Contextualizar o que se diz, e observar o contexto em que as palavras são usadas pelos outros, é de grande ajuda na compreensão dos enunciados. No entanto, má-fé e ignorância costumam ser detonadores de diversos equívocos na comunicação humana.



Durante os trinta e dois anos em que lecionei Língua Portuguesa a jovens e adultos, procurei fazê-los perceber o quanto a Língua é importante como instrumento de interação social e de apreensão do mundo. Provavelmente por essa razão, venho-me sentindo incomodada com o “fenômeno de (in) comunicação” que. vem ocorrendo com frequência maior do que seria desejável.

Uma das fontes de comprovação de tal fato é a leitura de comentários nas postagens das redes sociais, se nos dermos ao trabalho de lê-los: A escreve uma opinião, B concorda, (mas não completamente) e C discorda totalmente. Até aí, nada de mais. Pessoas podem ter visões e opiniões diferentes sobre qualquer coisa, não é? A famosa liberdade de pensamento, que ninguém questiona. Pelo menos, não eu. Agora, o que pensar, quando, ao analisarmos cuidadosamente os comentários de A, B e C, percebemos, não sem espanto, que os três no fundo estão dizendo a mesma coisa? Discordam, concordando?




O que falta afinal? Instrução? Em alguns casos, isso é notório na própria forma de expressão do indivíduo, Não me espanto mais com os “encomodo”, “conserteza”, e assemelhados, logo, com certeza, não é o meu maior motivo de aflição. Sua origem está exatamente em perceber indivíduos que mostram, apesar do nível de instrução, dificuldade de interpretar, em alguns momentos, de forma adequada o que leem, ou de expressarem o que querem dizer.
Por outro lado, mais do que mal estar, surge em mim uma verdadeira indignação diante de discursos mal intencionados que deturpam, sem o menor pudor, ou decência, o que publicam ou repassam. Muito triste! Muito perigoso!
Diz S.I. Hayakawa em seu livro Linguagem no pensamento e na ação: “Na melhor das hipóteses, é uma prática estúpida, em qualquer ato de interpretação, ignorar-se os contextos.”
Em se tratando de comunicação, poderemos dizer que contexto é a situação verbal, não verbal e física que nos permite expressar/ interpretar adequadamente o pensamento. Quando ignoro o contexto e me atenho às palavras, bloqueio o entendimento real.


Pois bem, que importância terá esse conceito para nossa vida diária e em que pode nos interessar tal matéria? Desde que usem o mesmo idioma, não se comunicam todas as pessoas com clareza e precisão? E é aí que começa o engano. Não basta haver troca de palavras para que se estabeleça uma comunicação eficaz.


Bernardo Soares, heterônimo de Fernando Pessoa, em O livro do desassossego”, escreveu: "Tudo quanto o homem expõe ou exprime é uma nota à margem de um texto apagado de todo. Mais ou menos, pelo sentido da nota, tiramos o sentido que havia de ser o do texto; mas sempre fica uma dúvida, e os sentidos possíveis são muitos.
A nosso ver, entre tantas outras, duas causas importantes levam os indivíduos a não prestar atenção aos contextos em que as palavras são usadas, cuja consequência costuma ser a confusão e mesmo o bloqueio nas comunicações:


  

_ Má-fé, do latim: mala fides, conceito associado à ideia de fraude, decepção ou intenção dolosa. e
· _ Desconhecimento dos processos comunicativos específicos
 No primeiro caso, observa-se uma prática tendenciosa, viciosa, cuja meta é desvirtuar, desmerecer, ridicularizar intencionalmente o objeto a ser tratado, pessoa ou situação.
Exemplo bastante simples, até aparentemente óbvio, seriam as manchetes de jornais sensacionalistas formadas por algumas poucas palavras de personalidades de destaque social, retiradas de seu contexto. Dessa forma, constroem-se, ou leva-se o leitor a construir, relatos totalmente deformados.
Digamos, por hipótese, que determinado indivíduo socialmente notável (político, artista, esportista) afirme em uma entrevista que sua total dedicação ao que faz seja um verdadeiro vício: “Meu trabalho é minha cocaína. Sou totalmente viciado.” Apoiando-se nessa declaração, um tabloide publica: FULANO DE TAL ASSUME SER VICIADO EM COCAÍNA. Da forma como isso foi apresentado, ignorando propositalmente o contexto, manipula-se a opinião pública para denegrir reputações com o intuito premeditado de desacreditar o entrevistado.


Mais grave é a atitude de muitas pessoas que reagem a qualquer desmentido posterior, afirmando: “Não importa o que ele disse depois, pra mim basta saber que ele é um viciado.” E sempre haverá quem defenda essa atitude porque “afinal de contas ele disse isso, não disse”? Se não disse, acho bem provável que possa ser verdade.” E é aí que mora o maior perigo, pois não estamos diante de uma deslavada mentira, mas de uma realidade amputada, deformada. Se a pessoa estiver ciente de que pode haver uma evidência adicional, mas propositalmente não verifica, e depois age como se a posição fosse confirmada, esta é uma desonestidade intelectual.
O resultado é frequentemente ouvirmos nos discursos alheios aquilo que eles nunca tiveram a intenção de dizer e reagir em função dessa falsa realidade, nos comportando tolamente, apoiando a má fé alheia.
No segundo caso, precisamos estar cientes de que as palavras não possuem um único significado, que este pode variar mesmo em situações similares. Portanto, no emprego de qualquer palavra há que examinar o contexto particular e o geral, para conhecer seu significado dentro daquele contexto.
Examinemos, por exemplo, a seguinte situação: “Uma amiga portuguesa, tendo mudado há pouco tempo para o nordeste brasileiro, dirigiu-se à empregada:
“Ó rapariga, à tarde, faça um bolo para o lanche”.
Totalmente indignada, a empregada retruca: “Eu nunca dei motivo pra senhora me ofender, não vou ficar aqui ouvindo desaforo!”
“Como é isso, criatura, que estás a pensar?” _espanta-se a patroa.
A chorar, responde a moça: “Eu posso ser pobre, mas sou honesta e vivo do meu trabalho. Nunca fui prostituta.”
“Mas eu nunca pensei numa coisa assim, porque estás a dizer isso?”
“A senhora me chamou de rapariga. Eu ouvi.”
Foi necessária muita habilidade para a patroa não perder a empregada e, sobretudo, teve que explicar-lhe que, em Portugal, (seu contexto social) rapariga significava jovem, moça e que não havia qualquer ofensa nisso.
Como se vê, a extensão dos contextos (verbais, sociais, históricos) a serem examinados pode ocasionar tais ruídos comunicativos devido à grande amplitude.


Ignorar esses fatos, aqui resumidíssimos, e outros tantos que deixaremos para outra ocasião, é um caminho para os mais diferentes transtornos de comunicação que geram dificuldades não só no trato social, como também na nossa própria compreensão dos outros e do mundo.

Para encerrar esta breve apreciação, consideremos que conceitos abstratos como liberdade, verdade, justiça, coragem, decência e outros de igual extensão de significado são constantemente provocadores de conflito. Assim, se estivermos convictos de que nenhuma palavra significa duas vezes exatamente a mesma coisa e que não significa exatamente a mesma coisa para duas diferentes pessoas, passaremos a examinar com mais cuidado os contextos em que são empregadas para podermos compreender o que dizem ou escrevem os nossos semelhantes.

Rosa Maria Ferrão

Liberdade de expressão – uma questão complicada

Comecemos com a dificuldade inicial: Definir o que seja liberdade. Para não alongar demais o texto, fiquemos com dois filósofos que se debruçaram sobre o tema. Segundo Rousseau “a verdadeira liberdade também é abdicar de parte dela para garantir o direito a todos.“, o existencialista Sartre afirmou que “estamos condenados a ser livres e que a liberdade implica responsabilidade” ou seja,  ser livre não é só fazer o que se quer, mas assumir a responsabilidade pelo que se faz.



Focando no tema que nos propusemos desenvolver: liberdade de expressão. É voz corrente que há liberdade de expressão quando o Estado não intervém para controlar a informação; ou quando a censura oficial não proíbe a livre circulação de opiniões e do pensamento em geral. A liberdade de expressão constitui-se em um direito fundamental com garantia da própria Constituição, portanto, a promoção dessa liberdade é uma das razões em que o Estado deverá se assentar, sob pena de desvirtuar sua finalidade principal, na proteção da pessoa humana em sua totalidade.

É natural que o ser humano anseie por ter respeitados tanto o seu pensamento quanto o poder de expressá-lo, quando, como e para quem quiser, e a sobrevivência do Estado está submetida ao desenvolvimento intelectual de seu povo o que, por sua vez, depende diretamente do livre expressão de ideias.
De outra parte, na medida em que é legalmente responsável pelo que ocorre na sociedade, o Estado, em situações por ele consideradas extremas, reivindica às vezes para si o direito de julgar aquilo que é justo e que deva ser permitido, entretanto a proteção da liberdade de expressão exige simplesmente que o governo se abstenha de limitá-la. São posições conflitantes que precisam ser criteriosamente observadas: o direito de uns e do outro.
Na prática, porém, essa não é uma questão tão simples quanto pode parecer à primeira vista e, portanto, merece uma análise mais cuidadosa.
Uma sociedade que pretenda ser livre precisa lidar de forma equilibrada e consciente com esse problema já que uma censura excessivamente repressiva e moralista, que intervenha em cada um dos organismos sociais de forma contundente, pode vir a gerar indivíduos condicionados a não pensar, facilmente manipuláveis por grupos controladores da informação que defendam unicamente seus próprios—e muitas vezes escusos—interesses, em detrimento do restante da população. 
Por outro lado, ao abolir totalmente qualquer forma de controle, em nome dessa liberdade de expressão, veem-se muitas vezes surgir na sociedade, de forma agressiva e descontrolada, atentados de toda espécie ao bom-gosto, à moral, à inteligência, à dignidade humana e à vida.
O desafio maior para uma democracia é manter o equilíbrio da balança: de um lado defender a liberdade de expressão e de reunião e, de outro, impedir discursos que incitem à violência, à intimidação ou à subversão.
Portanto torna-se imprescindível definir de forma clara o que se pretende dizer com liberdade, seja de expressão, seja de ação, antes de crucificarmos a tentativa de qualquer interferência estatal, atribuindo-lhe a culpa por alguns males que são muito mais frutos da incapacidade humana de lidar equilibradamente com os recursos que tem à sua disposição para tornar os homens realmente livres.

Rosa Maria Ferrão

CASA ARRUMADA

E eu pergunto: Indiferença é pior que desamor? Estar só é padecer de solidão? Acomodação é pior do que revolta? Quem decide tudo isso?


Ontem ele me atirou pro canto feito um sapato velho. Disse uma dúzia de palavrões, bateu a porta com raiva e saiu do quarto, da casa, da minha vida.
Fiquei pateta, olho arregalado, língua presa, braço caído, no espanto de nada entender.
Pensar, não pensei. Não dava. Era tanto barulho! As mãos ansiosas desalinhando o cabelo, as pernas inquietas a bailar pela sala, o bigode a subir e a descer, a veia azulando a testa. As palavras e o cuspe caiam sobre o tapete.
Meu Deus, que cena!
E eu lá, muda, parva, olhando sem perceber. Depois do estrondo da porta, o silêncio.
Chorar, não chorei. Não dava. Era muito susto, muito cansaço. Me bateu um vazio!...
À noite fiz o jantar e pus a mesa pra nós dois. Esqueci! Força do hábito.

Dormi e acordei sozinha. Não houve diferença. Por que haveria? Há tanto tempo ele não estava mais aqui.
Vou trabalhar como sempre, volto, faço compras, o jantar, durmo e acordo. Está bem assim.
Tocam a campainha. Procuram por ele.
Mudou-se pra onde não sei. É meu marido, ou foi, eu... eu não sei mais...
Ele agradece e pede desculpas. Antes de fechar a porta, ainda o ouço murmurar “parece maluca”.
Será? Deveria ter gritado, chorado, exigido explicações? Deveria ter pedido “pensa melhor, vamos conversar”, ou coisa assim? Não é desse modo que agem as pessoas normais? Ou não?

Mais de um mês... A casa anda em ordem, a roupa limpa, o emprego estável, o serviço em dia. Horas iguais. Iguais noites e dias, tudo igualmente igual. Tão confortável!
Pensar não penso. Não quero. Me dá preguiça.
Que aborrecimento! Carta de mamãe.
Querida filha,
Soube da terrível (?) notícia por intermédio de tua vizinha. (Ah, vizinhos! Melhor não tê-los... não é bem assim, mas...) Por que você não me escreveu contando? Imagino que deves estar sofrendo muito (mamãe sempre teve muita imaginação!), mas não fica preocupada, já falei com teu pai e vou para aí ficar contigo um tempo e etc etc...
Ora, ora, ora... E essa agora?

Vou ligar neste instante, preciso dizer...
Sim, eu sei, mãe, eu também te amo, mas tá tudo bem, pode acreditar! É bobagem fazer uma viagem cansativa dessas por tão pouco. É, eu sei, foi chato mesmo, mas eu já estou bem, não precisa se preocupar, juro! É, eu prefiro assim. Não, eu não preciso de nada mesmo. Está certo, beijos em todos.
Bem, até que não foi tão difícil.

Fui ao cabeleireiro, almocei num restaurante chique, fui ao teatro e tudo isso porque hoje é sábado.
Domingo, segunda, terça, 27, 28, 29, 30. Novembro, dezembro, janeiro.
Dia de feira, pagamento da faxineira. Três anos hoje, ora vejam só!
Preciso levar verduras e algumas frutas. É melhor para a pele. Jesus, tudo tão caro!
Eu digo, mamãe dizia há quarenta anos e, provavelmente vovó antes dela. Carestia hereditária. Melancia! Adoro melancia, tão fresca, tão colorida!
Leva inteira, freguesa, tá um mel! Melhor preço da feira.
E aqui vou eu com melancia pra um mês.
Vou botá as compra no elevador pra senhora. São cinco prata do carreto.Tão suado, tão pequeno e raquítico, menino-velho-empurrador-de carrinho-de-feira! Toma lá dez, mas não acostuma, hein!?
Riso branco na pele preta: Inté, dona!

Te juro que hoje eu não saio mais, que canseira!
E a velha da faxina me olha, cansada. Vai por aí a arrastar móveis, a polir metais, a esfregar o chão... Entende tudo de cansaço. A vida é uma canseira, moça!
Faço o almoço. Sentamos à mesa a mastigar silêncio. Ao final da tarde ela se vai.
Tomo o meu banho. Frio, demorado, abençoado banho... Droga, campainha numa hora destas? Tinha que ser, é sempre assim! Ah, meu Deus, meu encerado. Um momento, tô indo!

Abro a porta, os cabelos escorrendo, ensopando o vestido.
Abro a boca. Olá, é só o que consigo dizer.
Ele entra mudo, manso, quase a medo. Senta no sofá. O irritante pé sobre a mesinha de centro. Voltei, diz.
Preciso enxugar meus cabelos, respondo.                                            
À noite preparo o jantar e ponho a mesa, só para mim. Esqueci. Força do hábito.
Dormi e acordei com ele em casa. Não houve diferença. Por que haveria? Continua não estando aqui!

Vou trabalhar como sempre. Volto, faço compras, o jantar, durmo e acordo. Está bem assim.
No entanto, algo me incomoda. Sinto que ele não combina com a decoração e o espaço da casa parece que diminuiu...
Deveria ter gritado, batido com a porta em sua cara, exigido explicações?
        Não é assim que agem as pessoas normais? Ou não?

Pequenas desistências




Pergunto:
Depois da barba, o chuveiro? Depois do descanso, o trabalho? Após o sexo, o amor?
E por que não?                                                                                                                    
Canso-me diariamente na inversão da rotina tão laboriosamente engavetada nos arquivos do tempo de todas as sociedades. Se o faço por teimosia ou cálculo, realmente não sei.
Você é um menino tolo e mimado, ela me diz. Os olhos em mel escorrendo por mim docemente. A ponta da língua a passear distraída por entre os lábios, a unha do indicador a desenhar meus ombros.
Deixo-a na cama e saio de casa.

Sigo a pé para o trabalho. É longe. As vitrines passam, os prédios, as pessoas, os carros passam. Passam todos. Passa passa gavião todo mundo é bom... as crianças nunca deviam crescer. Brincar de roda, girando cada vez mais depressa... uma zonzura boa na cabeça. Currupio arrepiou, aiêêê!!!
Chego ofegante. O suor exala, misturado ao odor do desodorante, da loção de barba, escorre no peito.
Quinze minutos na fila do elevador. Faces estranhas, distantes, cansadas. A porta se abre e entramos, dois a dois, obedientemente. Passa, passa, passaraio, que me deixe eu passar, se não for o da frente há de ser o de trás, trás, trás... O seio macio da loira, roçando em meu cotovelo. A caspa do ascensorista em meus olhos. A velhinha cheiro-de-alfazema em meu nariz. Uma coxa roliça encostada à minha. Respirações a meia força. É proibido fumar. Acendo o cigarro. Hei, cara, qual é a tua? Sou alérgica a essa droga! Reclama? No fundo do olho, o sorriso. O colant agarrado a cada poro, uma segunda pele rubra.
Nono andar, quem vai?
O colant passa por mim, roçando de leve. Não vai descer? É, vou.


 Fora, apago o cigarro, olho o relógio no corredor. Outra vez atrasado.
Porra, cara, não dá mais pra segurar tua barra. O patrão já perguntou por você umas três vezes, mandou tu ir lá na sala dele assim que chegasse. Tá uma arara!
Vou até à máquina de café e tomo um e mais um e ainda um terceiro. Pingo preto na camisa. Mas, será possível, menino, que você tem sempre que sujar a roupa, quando come? Parece que tem boca mole... Cruzes!
Pelas imensas janelas entra o sol, o azul intenso, o ar morno da primavera. Prefiro a noite. Sempre. O néon, o mercúrio, a lua. Todo mundo mais bonito, carregado de mistério, diferente...
Entro na sala acarpetada, espero alguns segundos. Entro, ao ser chamado, e antes que ele abra boca, peço a minha demissão. Sou atendido, sem perguntas. Nenhuma explicação pedida ou dada.
Deixo-o à escrivaninha e saio do emprego.

Tanto espaço e me sinto prisioneiro. Tanta gente e me sinto sozinho.
Quando era pequeno, costumava achar esquisito o pai dizer a doença da tia Cotinha é solidão. Na casa grande, cheia de avós, tios e primos, como é que a irmã de minha avó podia sofrer de solidão?
Acabou morrendo na cadeira de balanço, num canto da varanda. Nem um gemido. Nada. O crochê caído no colo, o espanto no olho arregalado, o fio de baba no canto da boca...
Só deram por falta no café da manhã. Foram ver no quarto: a cama arrumada, tudo no lugar, janela fechada, vazio, mudo. Aonde foi, o que foi o que não foi, procura daqui e dali... E ela lá. Toda a noite. A linha inútil enroscada nas patas do gatinho. Que pena, ia ficar uma tolha tão linda! Agora ninguém termina! Trabalho perdido.
Tia Cotinha. Solidão.
Tirem as crianças daqui, gritava tia Naná. Olho-a com pena, coitada!
Deixo-a na cadeira e saio da varanda.

Quero comemorar a saída do emprego e telefono-lhe.
Fala depressa, estava no banho e estou com o cabelo cheio de xampu. A voz é rouca e o riso morno. Penso em voltar para casa.
De repente percebo que não sei como dizer que mais uma vez estou desempregado. E que isso me deixa feliz. Não quero ouvir novamente quando é que você vai crescer? Sem crítica, só preocupação. Tentarei justificar-me com a perseguição do chefe, o salário medíocre, o serviço ridículo.... Ela fingirá concordar, passando os dedos entre os meus cabelos, tudo bem, meu filho... Desligo o telefone.
Deixo suas perguntas sem resposta e saio da cabine.

No restaurante estou só. Drinques matutinos não são usuais.
De dia se trabalha, se come, se conversa. À noite se dança, se bebe, se dorme na cama.
A sobremesa depois da comida, o obrigado depois do favor, o desculpe depois da falta, a tranca na porta depois do ladrão.A vida é assim: regulamentada, condicionada, previsível.
Ainda não estamos servindo, moço.
É? Mas eu quero beber um uísque e quero agora. Chamo o gerente e te ponho na rua.
Então, tá!
Neca, esse moleque, quando quer uma coisa, não tem jeito. Já viu que não acata mando, né? As coisas têm que ser do jeito dele. Pode escrever, este meu afilhado vai longe! Nasceu pra chefe! Padrinho falava e o pai inchava de orgulho, apertava as minhas bochechas até doerem.
Sinto um leve torpor. A cabeça flutua. Pesam-me os membros. Sinto vontade de correr para os braços dela, enroscar-me em seu colo, encolher até, penetrando em seu ventre, renascer dela. A ideia da transformação me fascina e me vejo crisálida e borboleta, voando livre, leve, pra longe... Nuvens de pó dourado cintilam ante meus olhos. Não há paredes, o mundo e uma imensa planície.
Aceita alguma coisa para comer?
Peço em filé. Há agora pessoas nas mesas. Conversam, mastigam, espalham nas toalhas migalhas de pão. Acabo de comer e pago a conta. Dou uma gorjeta alta.
Deixo-o sorrindo e saio do restaurante.

Traço linhas sinuosas nas calçadas retas. O movimento contínuo dos carros preenche a larga avenida. Verde vermelho verde... atravesso.
O choque e a dor imensa insuportável verde vermelho verde vermelho quente e viscoso em minha boca empapando a camisa menino babão sujou toda a roupa a sirene as vozes meu deus as mãos o vermelho a ambulância o hospital a enfermeira o cheiro de éter quando é que você vai crescer as mãos no meu rosto os olhos de mel o beijo o frio a escuridão o...
Deixo-a chorando e saio da vida.

E por que não?
IMAGENS: NEIL GAIMAN