5.6.06

Um homem de sorte

Um sujeito de sorte

Rosa Maria Ferrão

Completamente embriagado, apoiou-se, sem fôlego, na porta. O PM não desgrudava. Entrou no bar, com passo instável, procurando um vaso sanitário. Tentava conter a ânsia, o enjôo, o mais possível. Não conseguiu. Desafogou-se ali mesmo. Oh, azar! Ainda não diluídos pelo álcool, lá estavam os restos mortais da lista do bicho. Quis apanhá-los para que o guarda não visse, mas o nojo foi mais forte. Sentia-se mal. O coração batia tão forte que parecia um cão feroz querendo livrar-se da coleira.

Não estava acostumado a beber daquele jeito e, ainda menos à cachaça. O Neguinho insistira tanto! Ele tão apavorado! E tome mais um copo. O papel arranhava-lhe a garganta, formava um bolo e não queria descer? Bebe mais um que desce. E ele bebia. Estava agora ali o resultado. Mal seguro das pernas, cambaleando feito um João Bobo, chegou ao banheiro. O lugar estava imundo, fedia — uma mistura de urina e desinfetante barato. Vomitou novamente. Depois, correu para a pia, molhou o rosto, a cabeça, ajeitou-se um pouco e saiu. Será que o PM ainda estava lá fora, esperando ele sair para prendê-lo? Ah, meu Deus, como é que eu fui me meter nesta enrascada?

Pedro estava desempregado já havia alguns meses. Não tivera muito estudo, mal e mal, terminara o primário. Se já estava difícil pra quem era doutor, imagina pra ele. Bateu em todas as portas, ofereceu-se pra qualquer serviço, mas nada. Foi quando o Neguinho veio com a oferta: o Tonhão, bicheiro afamado na redondeza, estava precisando de um apontador de bicho. Era serviço fácil e o dinheiro dava pro gasto. Pedro não pensou duas vezes. Na mesma hora procurou o Tonhão, conversou um pouco e foi lá pra esquina. Durante dois meses a vida foi uma beleza. Ficava por ali, conversava com um, com outro, paquerava as empregadinhas da redondeza. Vinha gente de todo tipo fazer uma fezinha de manhã e à tarde. No final do dia, ele pegava o dinheiro das apostas, entregava ao cobrador e recebia o dele, sem complicação, sem problemas. Feliz da vida!

Numa tarde, quando estava se preparando pra fechar a banca, o Neguinho apareceu. Chegara ofegante da corrida e, entre uma respirada e um piscar de olhos, ia dizendo: —Engole, engole, os home vêm aí!

Pedro não conseguia entender nada. O Neguinho, desesperado, ia pegando as listas, amassando e enfiando na boca. Estendeu um bolinho delas pro Pedro:

—Anda, criatura de Deus, deixe de sê leso, engole tudo.

Pedro até que tentou, mas não tinha prática. Foi aí que o Neguinho pegou a garrafa de cachaça da mão do Zé da Cana e deu pra ele beber.

Quando o carro da PM chegou, não havia mais nada pra pegar. O Neguinho falou entre os dentes:

—Se manda devagarinho, depois a gente se fala.

Como se precisasse a recomendação! Mesmo que ele quisesse correr, as pernas não obedeciam. E aí deu no que deu.

E agora? Como é que ele ia se virar? Não ia voltar e passar por aquilo tudo outra vez. Não fora feito para essas aventuras. Precisava procurar um serviço de outro tipo, menos perigoso.

Abriu o jornal e começou: “Ajudante de pedreiro, atendente de consultório médico, entregador de pizza... tudo salário mínimo. Como é que alguém pode viver com isso? Mensageiro. Jovem, boa aparência, boa memória, com conhecimento da cidade. Ótimo salário. Vale-refeição e transporte, mais despesas. Gente! Que boca é essa? Esse emprego foi feito pra mim. Preciso ir correndo lá. Deve ter uma fila de um quilômetro, pelo menos”.

Até que nem. Uns quinze rapazotes se tanto. Entravam tímidos e saíam com a cara desanimada. E o Pedro cada vez mais esperançoso. Chegou a sua vez. E não é que ele conseguiu? Serviço moleza! Só entregar umas encomendas a clientes especiais e, ainda por cima, ele ficava em casa aguardando os chamados. O dinheiro era tão bom que até se esqueceu de perguntar de que era a firma. Também nem interessava, depois ele ficava sabendo. Dormiu feliz naquela noite. Logo de manhãzinha, a dona da pensão veio bater à porta do seu quarto. O telefone. Era o primeiro serviço e ele não queria fazer besteira. Arrumou-se correndo e chegou quinze minutos antes do horário marcado. Logo a secretária entregou-lhe um pequeno pacote, muito bem embrulhado, sem endereço, nem destinatário.

—Ô dona Fátima, aqui não diz pra quem é. Como é que eu vou saber?

—Calminha, seu Pedro, eu vou orientar tudo. Veja só.

Mostrou-lhe um papelzinho com um endereço. Quando Pedro foi pegar, ela puxou a mão para trás e lhe recomendou:

—Decore. Esse papel fica comigo. Sabe onde é? Conhece o lugar?

—Sei, sei sim. É um bairro de bacana. A rua eu não sei direito, mas, chegando lá, eu me viro. Deixa comigo, dona Fátima, já está entregue. Vou agorinha mesmo.

—Não, não. O freguês está esperando a encomenda só depois das dez da noite.

Pedro quis reclamar, dizendo que aquilo não era horário de trabalho, mas não podia se arriscar. Pegou o embrulhinho e voltou pra pensão. Dormiu boa parte da tarde.

Depois do jantar, pegou o trem. Em seguida, dois ônibus, mais uma caminhada de uns vinte minutos a pé. As casas iam rareando. Há um bom tempo não cruzava com mais ninguém. Começava a desconfiar que estava perdido, quando finalmente avistou umas janelas iluminadas, meio escondidas por umas árvores. Apressou o passo, querendo livrar-se rapidamente da missão. Chegou ao portão de ferro e empurrou-o. Seguiu pela alameda cautelosamente, olhando para todos os lados à procura de um sinal de vida. Nada. Finalmente alcançou uma enorme porta de carvalho. Nem bem levantou o braço para bater e esta se abriu com um rangido. Sentiu um arrepio percorrendo-lhe a coluna. Pela fresta da porta passou uma revoada de morcegos e o som de uma gargalhada. Imediatamente, deixando cair o embrulho que trazia, Pedro deu meia volta e saiu numa corrida desabalada.

Ao entrar no ônibus de volta à pensão, tremia tanto que o chofer comentou com o trocador:”O amigo aí tomou todas!” Não adiantava nada tentar explicar. Ninguém ia acreditar mesmo! Mas ele tinha certeza de que acabara de sair de um castelo de bruxas ou de vampiros, ou qualquer coisa assim.

No dia seguinte procurou o Neguinho pra pedir conselho. O que é que ele fazia? Pedia o dinheiro ou não? Ele fizera a entrega!O embrulho ficara lá no chão. Mas e se quisessem que ele fizesse outra entrega? Ele não ia de jeito nenhum, isso nem tinha discussão e aí era capaz de não quererem pagar o outro serviço. Como é que ele ia fazer?

— Mas por que é mesmo que você saiu correndo? Até agora não entendi direito, só porque uns morceguinhos de nada saíram voando na tua frente? Tu não falô que a casa era antiga? Então, casa velha tem morcego mesmo...

—Não, cara, não foi só os bichos. O problema foi a bruxa, ou vampira, sei lá...

—Como é que é? Tu não disse nada disso antes... Me conta, como ela era, o que que ela fez?

—Sei lá, né? Tu acha que eu ia ficar esperando pra saber? Me mandei, já te disse!

—Você tá me dizendo que não viu nada, não é isso? Só porque ouviu alguém rindo, já imaginou coisa... Você bebeu, Pedro, tu é uma piada, cara. Se borrou de medo à toa e agora vem me pedir conselho? Sei lá que é que tu vai fazer? Se tu contar essa história por lá vão rir na tua cara.

E o próprio Neguinho ria tanto que deixou Pedro furioso. É, pelo jeito tinha passado todo aquele sufoco a preço de nada. Podia dar adeus ao dinheiro. E agora? Estava mais uma vez na pior.

Não tinha jeito, o negócio era correr atrás.Passar fome é que não dava. Já estava devendo um mês na pensão e mesmo a dona Flora sendo um amor de pessoa, também precisava viver, não ia ficar fazendo caridade... Pensando na vida, desceu a rua meio sem destino. Na esquina, parou na frente da banca de jornais. Resolveu comprar um pra continuar procurando qualquer coisa pra fazer. Salário mínimo mesmo serve. Fazer o quê? Olhou um, olhou outro... Quase nada. Dia de semana é fogo! Melhor esperar o jornal de domingo, sempre tem mais coisa...

—Ô Pedro, saiu raspadinha nova. Tá a fim não? Um real!

—Já comi a unha de tanto raspar pra nada, seu Chico, acho que isso aí é a maior enganação. Só quem ganha dinheiro é o governo. O senhor conhece alguém que tenha tirado prêmio? Garanto que não...

—No outro dia mesmo o Carlão falou que o cunhado de um amigo dele ganhou um carro.

—Tá vendo? É sempre a mesma coisa: ninguém viu, é sempre um outro que contou. Tudo papo furado! A televisão fala e todo mundo acredita.

—Tá certo Pedro, mas na Loteria Federal meu pai ganhou há muitos anos um bom dinheiro e eu mesmo já tirei a sorte uma vez. Não foi muito porque eu só tinha um pedaço do bilhete, mas ganhei.

—Bom, isso é verdade! Uma tia minha também. Quem sabe né? Eu tô ferrado mesmo! Vá lá, me dê um aí! Um não, me dê logo dois daquele terminado no 13. Do jeito que tá minha maré de azar, o treze vai me dar sorte.

Mais animado, cheio de esperanças, Pedro voltou pra pensão, jantou e dormiu tranqüilo. Era, afinal, uma questão de lógica: as coisas não podiam piorar, então só dava pra melhorar.

Acordou tarde no dia seguinte e resolveu ficar por ali mesmo, lendo uns jornais velhos e fumando um cigarrinho.

Dona Flora estranhou, ficou preocupada. Encheu uma caneca com café e bateu à porta do quarto.

—Tá se sentindo bem, Pedro? Você não desceu, trouxe um café. Você não vai trabalhar? Tá doente?

—Obrigada, dona Flora! Se preocupe não! A partir de sábado minha vida vai mudar. Hoje vou ficar aqui descansando, mas eu estou bem, pode acreditar.

Vendo o sorriso confiante no rosto do rapaz, a senhora acreditou. Não era de se enxerir na vida dos hóspedes. Voltou aos seus afazeres.

Sábado bem cedo Pedro acordou disposto. Foi para a rua logo depois do café. Estava irrequieto, ansioso. O dia ia custar a passar. O sorteio era lá pro final da tarde, mas em seu coração havia se instalado a certeza de que seu número ia dar no primeiro prêmio. Foi para a pracinha, sentou-se no banco. Fez as contas: não ia ficar rico, mas era uma dinheirama boa, dava até pra montar um negocinho só dele. Coisa modesta, mas dele. O Neguinho passou do outro lado da calçada, acenou, mas Pedro nem viu. Estava no caixa, atrás do balcão, contando o dinheiro, dando ordens aos dois empregados.

De repente acordou do sonho.

—Que horas são?—perguntou a um passante.

—Quase seis!

Sem nem agradecer, disparou em direção ao botequim, onde entrou berrando:

—Põe o rádio aí na estação que dá o resultado da loteria, Mané. É hoje que eu vou ficar rico! Me dá aí a última cerveja fiado!

Bebeu meio copo de um só gole. Estalou a língua e virou o resto. Geladíssima! Serviu o segundo e o terceiro que esvaziou com a mesma sofreguidão.

—Vai começar! Aumenta aí, Mané! E desce mais uma!

E essa e mais outra lá se foram.

O quinto prêmio. Os números sorteados.Nenhum igual. Também não interessa, o meu vai dar na cabeça!

—Vê outra gelada!

—Vai com calma, Pedro, tu não tá acostumado!

—Fica quieto, homem. Agora é o segundo prêmio!

Nada. Mais outra garrafa secou.

—É agora, Mané! Confere pra mim! Meu coração não agüenta!

E os números foram pingando um a um. E os olhos do Manuel, fixos nos olhos vidrados do Pedro, foram ficando tristes, tristes, até que o homem chorou.