21.9.15

Pensão para cavalheiros de fino trato




Sento-me diariamente aqui a partir das sete horas. Nas mesas as mesmas faces de sempre, sem nome e sem vida que eu conheça. Deixo-me ficar. Vejo a calçada, os pés de pessoas. É incrível como se podem conhecer detalhes íntimos de alguém, observando seus pés.
       O sono vem, vem o garçom: lastimo, hora de fechar, boa noite, até amanhã, bonita noite, não?
       Cansaço e álcool entorpecem-me as pernas. A comida avinagra o hálito.
       Lua alta. Divirto-me em pisar a própria sombra. Asfalto gasto, buracos na calçada, bosta de cachorro. Ó Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa, onde?
       Meus bolsos vazios furados. O chão passa devagar sob meus sapatos gastos. Meu quarto de pensão.


      
O senhor sabe, exigimos respeito neste lugar. É pra evitar problemas. Imagine que há algum tempo...
       É gorda e velha e feia e tem um enorme buço preto acima da boca rubra e gordurosa de batom. Ex-prostituta, ex-cafetina, ex-proprietária de cabaré, respeitável dona de respeitável pensão só para cavalheiros.
       ... e ela lá, morta em cima da cama. Um escândalo! O senhor sabe como é. Uma vergonha para o estabelecimento e um prejuízo para os negócios.



       Jogo-me vestido sobre o lençol imundo. O calor abafa. Há zumbidos no ar. Malditas moscas, maldita sujeira! Meus olhos pesam. Sufoco. Alguém aperta meu pescoço magro. Tiro a gravata sebosa, as roupas. As pulgas não me permitem descanso. Já se veem os contornos dos móveis do quarto: a cadeira de três pernas, a gravura do Sagrado Coração, o armário sem portas. Acendo um cigarro e espero a manhã.
       Despertar de café sem leite, pão sem manteiga.
       Até logo, tenha um bom dia. Temos tripa hoje no jantar. Gosta?
       Sim, sim, muito. Até às sete.



       O ônibus lotado, o cheiro acre do sovaco do trocador, pisões, empurrões. A cotovelada no rosto. Não se preocupe, nem doeu.
       Por que disse isso, afinal? Doeu pra burro... E, diacho, tenho nojo de tripa. Há tanto tempo perdi o hábito de reclamar, de opinar, discutir...restou-me o sorriso imbecil, o não foi nada, o obrigado, alguns suspiros, rugas na testa e nada mais.
       Pouco a pouco, amoleci, curvei a espinha. Virei bosta. Sinto o fedor de mim mesmo. As moscas também.
       Com licença, desculpe, vou descer.
       Besteira mesmo ficar pensando nisso.
       Enrolo os pés na escada. Aliso com as mãos o terno amassado. Chego à minha mesa na grande sala do Tribunal. Minha mesa: ofícios, protocolos, petições, mandados. Ofícios, protocolos, petições, mandados. Ofícios...



  
       Barulho do ventilador. Apito de trem. Lembrança que vem, vai, escapa, torna a vir...
       Minha mala de couro cru fedia. Pai e mãe na estação. A esperança deles, o meu medo. Os olhos do pai mandando confiança. Os olhos da mãe brilhando em águas azuis, escorrendo mansinho, pingando o vestido preto.
       Tá pensando na morte da bezerra, seu? O serviço sai ou não sai?
       Cara infeliz, puxa-saco desgraçado. Qualquer dia destes...
       Caramba, levantei mesmo de mau humor! Plict, plact, plict. As teclas do computador ferindo o silêncio. Rápidas. Em observância à lei 54321...
       Estação—Faculdade de Direito. O pai acreditando. A mãe e o embrulho de empadinhas.
       Faculdade de Direito—Doutor Fulano de Tal—escritório, secretária, diploma na parede, anel.
       Livros noites insones dinheiro curto estudo estudo estudo. Mulheres? Em revistas emprestadas no sonho na rua de longe.



       Já está pronto o processo do caso Antunes? Ô cara, que é que há contigo?
       Já já já. Já está pronto, sim senhor. Há anos, há séculos, há milênios!! Pro inferno!
       Assustei-o. Talvez não devesse ter falado assim. É um ferrado que nem eu. Preciso me controlar. Não sei o que há comigo. Afinal, o aumento sai no mês que vem: terno novo, pensão nova, ela olhando pra mim. Ela. Pescoço macio ancas de potranca nova saudável cheiro de violeta beijo morno úmido e o olhar: fogo e convite.
       Besteira ficar sonhando. Qualquer chefinho de meia- tigela tem mais oportunidade que eu.
       Gosto de sangue na boca.
       O pai orgulhoso até o fim. Falido, doente e calado.
       A mãe e o telegrama. A morte do pai, a morte do sonho. As dívidas do pai, o emprego no tribunal.
       Estas paredes tão altas, tão cinzentas! Esmagam, oprimem. Barata sob sola de sapato. Cheiro de desinfetante no ar.
       Minha mesa, o computador, pilhas de papel, janelas altas, luz elétrica, a porta...
       Hoje você fica até às nove. Serviço atrasado, sabe como é, muito que fazer...Ei, que é que há cara, não tá me ouvindo? Onde é que cê vai?
       A voz dele aguda, longe. Longe cada vez mais.





       Sol forte obrigando a espremer os olhos. Crianças saindo da escola. Gritos felizes. Carros, pessoas. Vida.
       O ar do meio-dia enche meus pulmões do suor das pessoas, da fumaça dos automóveis, da poeira do asfalto. Meus olhos se deslumbram com todas as cores e os ouvidos com todos os sons.
       Sinto a vibração de nervos e músculos. Quero jogar fora toda a velha vida .
       Quero vida nova novo rumo caminhos de não sei pra onde e nem pra quê o infinito o desconhecido o ódio o amor terror e luta.  Como?
        Não sei nada agora.  Nada sei agora.

Só sei que quero viver.

Texto de Rosa Maria Ferrão
Imagens - Rosa Maria Ferrão

6.9.15

No divã



Que ódio!
Fico assim tão desencontrado pé mão na cabeça tudo deslocado
no tempo
                           no espaço
língua presa calada colada em gosma no teto da boca
tumulto por dentro
ideias
minhocas em lata sem ar
com medo de sair
e servir de isca pra peixe
sofrer morrer sei lá
então calo sorrio olho inteligentemente desfaço
faço pose de-sei-lá-o-quê
RIDÍCULO
é exatamente assim que me sinto
ridículo
MAS NÃO ACHAM


 sujeito seguro estável brilhante mesmo
que porra é essa só eu sei
fico representando a mim mesmo
para que os outros se sintam seguros tranquilos
EO PIOR É QUE FICAM, NÃO É ENGRAÇADO/
eu sou aquele em quem todos confiam contam segredos...
VOCÊ TEM SEMPRE A PALAVRA CERTA O CONSELHO ÚTIL
E DEPOIS NÃO SAI ESPALHANDO POR AÍ É CONFIÁVEL
é uma loucura porque eu sei
sei tudo o que os outros devem fazer
tudo o que eu devo fazer
mas e o que eu quero fazer
e o que eu sinto
quem se importa? Problemas? Duvido!
VOCÊ SUPERA TUDO
que horror
eu não sei
e quando sei
não quero e
quando quero
não faço porque não devo
fugir
sempre penso quando só e com nada a fazer
porém
pra onde?
pra quem?
pra quê?
e os outros
os que precisam
os que dependem
ou pensam que
ou eu penso que por necessidade de me apegar

e eu só queria isso
o vazio
oco  buraco
e a vida correndo passando dia a dia noite a noite
a cada minuto a cada segundo
sem mudança
pássaro impedido de alçar vôo pela própria censura
pela própria falta de coragem
tão inteligente e não entendendo nada
tão consciente e andando ao léu
                    SEM RUMO
abjeto objeto das forças externas com vontade de gritar na fala mansa
tigre domado saltando para o aro de fogo ao estalo do chicote
2+2 são 4 e não adianta poetar 5
são quatro como os cavaleiros do apocalipse...irreversíveis
arquitetei uma vida que nunca vivi
          SONHOS
quem precisa deles quando não se consegue dormir
dormir é morrer um pouco
não se pode morrer sem ter aprendido a vida
decidido
sem tempo para dormir
sem tempo para sonhar
sem tempo para morrer
não já não ainda

“mundo mundo vasto mundo se eu me chamasse Raimundo”
É Drummond...
SERIA UMA RIMA
Mas também uma solução
a consonância a adequação simples e lógica
massa e barro se moldam constroem-se permitem-se
rocha bruta exige técnica e cinzel e martelo cortar bater desbastar
e tempo mais muito
e paciência talvez toda a vida
ela inteirinha para concluir que o produto não é o que se idealizou
faltou arte quem sabe?
então nada mais resta fazer a não ser cobrir com um lençol
ocultar e esquecer
admitir que se falhou e que não há mais tempo para recomeçar quem gosta de?
O jeito é continuar fingindo ocupando o tempo e fazendo pose de grande artista
engolir o cotidiano sorrir com creme dental anti-cárie anti-placa anti-nicotina anti-tártaro fluor hortelã menta limão
COMPLICADINHO, NÉ?
absurdo incoerente falso sei lá
também não sei se é bom ou mau bem ou mal
aliás que diabo é isso de certo errado pode não pode
desatino pensar
eu sou dois
nunca um nunca uno nunca inteiro a dualidade é minha constante
minha unicidade consiste em ser permanentemente
1+1
às vezes bem poucas é verdade
penso me conhecer
não sei de onde
lembro o meu nome
não por inteiro...e...


            Ora vejam só! O filho da puta dormiu. Ronca como uma porca recém-parida. Ressona o infeliz. Pago uma nota preta pra esse sacana me ouvir e ele...dorme.
            Eu me rompo me rasgo me dilacero me exponho me decomponho e ele...DORME.




TEXTO: Rosa Maria Ferrão

IMAGENS: Iman Maleki