15.7.12

O poblema do Zé

 A tarde ia a meio. A repartição estava uma pasmaceira só. Nem as moscas se davam ao trabalho de atormentar as pessoas presentes. O pouco serviço que houvera para fazer estava terminado. O chefe não aparecera, o que era cada vez mais comum, e os funcionários estavam por ali, zanzando à toa, contando piadas, um cafezinho, fazendo crochê, um cafezinho, falando da vida alheia, outro cafezinho, lixando as unhas, resolvendo palavras cruzadas...mais um cafezinho...
    —Mário, você é demais, sabia? Ninguém conta uma piada igual a você...
    —Mário, quando é que a gente vai ver aquele filme? Você prometeu...
    —Filme? Que filme? Você vai levar a Aninha ao cinema? E pra quando fica aquela nossa saidinha à noite?
    Ele fica com todas elas e eu aqui, jogado fora. O que é que eu tenho de errado? Como será que ele faz? Tudo bem que é bonitão e tal, mas...
    —E aí, Zé, o que é que tá pegano? Fica aí sozinho, ciscando, com essa cara descolada...
    —É, Mário, tem alguma coisa pegando mesmo e eu estou aqui no meu canto cismando e, para teu governo, quem está ficando desconsolado é o meu ouvido...
    —Que papo é esse? Tá com dor de ouvido? Eu mando vir um remédio da farmácia que é porreta.
    —Não é nada disso, Mário. Eu estou chateado, é só.
—Pára com isso, meu chapa. Conta aqui pro teu amigo o que é que tá incomodano que eu resolvo. Amigo meu não fica assim.
    O Zé ficou na dúvida. Na hora de tomar qualquer decisão, ele sempre ficava. Será que valia a pena se abrir com ele? Observou a expressão atenta do colega, aquele jeito de quem tem sempre uma resposta para tudo, o ar alegre de quem consegue o que quer... Resolveu abrir seu coração.
    Estava com trinta e dois anos, não era burro, tinha um emprego que, se não era lá uma maravilha, também não era ruim. Morava sozinho num apartamentinho bem jeitoso, confortável, tinha seu próprio carro...Mas não arrumo ninguém!
    As últimas palavras saíram com sacrifício, quase sussurradas, como se estivesse confessando um crime. Imediatamente se arrependeu de ter falado.
    —Esquece, Mário, besteira minha. Acho que é essa falta do que fazer...
    —De jeito nenhum que vou esquecer! Vamos dar o fora daqui e ver o que é que agente faz. Eu tenho uma idéia. Essa coisa de mulé é comigo mermo. Cê sabe que nesse troço eu sou formatado com deploma na parede e tudo.
    Para total desespero das meninas, Mário despediu-se e foi levando um Zé murcho e sem graça atrás de si.
    —Eu nunca tive esse teu poblema, Zé, pelo contrário, preciso é fazer ginástica pra me livrar de algumas mulheres que não largam do meu pé. Eu sou assim mesmo, decisivo. Se tenho que fazer alguma coisa faço logo, por isso é que nós vamos resolver essa questã ainda hoje. Deixa comigo. Faz o que eu te mandar e cê vai se dar bem.
    —Mas o que é que você...
—Não pergunta nada. Vai por mim.
    O Zé, com era hábito, resignou-se. Foi seguindo o amigo. Este aproveitou o silêncio e foi contando todos os seus casos só pra inlustrar, pra dar exemplo, não era pra ficar se gambando nem nada assim. O Zé balançava a cabeça.
    —Além de ter boa parecença, tem que ter bom papo, saber das coisas, fazer elogio na hora certa, sabe como é? Vai aprendeno, Zé.
    Depois de alguns quarteirões entraram em uma rua movimentada. O Mário parou em frente a uma loja. O Zé parou também.
    —Agora você pode me explicar...
    —Olha só, Zé, primeiro a gente tem que começar pela parecença.
    —Como assim?
—Olha só essa tua roupa! Caidinha, sem-graça. Não me leva a mal, meu chapa, não tô quereno ofender...
    — Ah, a aparência... Tá, tudo bem, não me ofendo não.
    — Depois tem outro poblema.
    — Mais um? Estou começando a perceber porque não arrumo nada com as mulheres.
    — É esse cabelo...
    — Cabelo? Mas...
    — É isso aí.
    — Continuo sem entender.
    — Tu tem que comprar é uma peruca, Zé. Mulé não se amarra num calvário
    — Calvo...
           — Esse troço aí...A mina olha, vê aquela bola de bilhar e já fica pensano “esse cara tá cansado, velho, careca...” sabe como é que é. Já com cabelo, eu garanto que tu se dá bem...
         — Você se dá bem...
         — Claro, né, mermão, eu tenho esta vasta cabeleireira, modéstia em partes...
          — Basta cabeleira, modéstia à parte. Pelo amor de Deus, Mário, pára de falar besteira!
         — Tu que sabe. Tô a fim de ajudar, mas se tu não qué...
        — Não é nada disso, o problema é o teu português e...
        — Vê lá como é que fala! Sô teu amigo, Zé, tá me estranhano? Eu gosto muito é de mulé: M-U MU, L-E LE, mulé. Que papo é esse de meu português?
        Zé deu um profundo suspiro. Mário era um mesmo um ótimo sujeito, amigo, estava disposto a ajudar, prestativo, mas a enxurrada de asneiras que continuava derramando por todo o canto, já estava inundando sua paciência. Além disso tinha encasquetado uma idéia e nem pedira opinião.
    Voltou a atenção para a loja. Na vitrine, uma variedade de cabeleiras postiças. Zé ainda tentou argumentar, mas Mário já pegara o celular e falava com a balconista da loja.
     Aquela situação era ridícula. Por que não entrava logo e perguntava o que queria?
    —Tem peruca pra home também? Maravilha! Tô ino praí. Não, boneca, eu não preciso, é prum amigo meu.
    Agarrou o outro pelo braço e foi arrastando pra dentro da loja.
    — Boa tarde, posso ajudar?—derreteu-se a vendedora, descaradamente.
    — Belezésima, o meu amigão aqui tá precisano de uma peruca que seje a cara dele, sacomé?
    A moça mal olhou pra cara do Zé Augusto. Arreganhou um sorriso derretido e, piscando os olhos muito azuis, disse com voz melosa:
    —Tudo que você quiser, bonitão.
    Mário sorriu-lhe de volta. O Zé se encolheu.
    Dirigiu-se aos fundos da loja, rebolando, em cadência estudada, o traseiro arrebitado e, pouco depois, voltou com os braços cheios de caixas das quais foi retirando as perucas e colocando sobre o balcão.
    O Zé, completamente vexado, tentou argumentar, mas Mário foi pegando uma a uma e colocando-as no coitado que só sabia suspirar a cada vez que se olhava no espelho.
    —Deixa pra lá, Mário... Eu já me acostumei assim, sem cabelo. Olha, até prefiro. Isso de cabeleira postiça não vai dar certo, não combina comigo e, além disso...
    —Fecha essa catraca e vai pondo os cabelo aí. Olha essa, boneca, tu não ficava apaixonada por ele?
    Já que o bonitão havia pedido, a boneca olhou e, por pouco, não soltou um cruz-credo!!, mas fez um hum-hum meio sem conviccção, só pra agradar.
—    Tá vendo só, seu inconfiado...
—    Desconfiado, Mário, desconfiado...
E assim, enquanto o amigo ia dizendo asneira atrás de asneira e a mocinha suspirava e piscava, o Zé foi pacientemente mudando de cabelo. Lá pelas tantas a balconista estendeu-lhe uma cabeleira verde. Foi a gota d’água.
     —Chega de palhaçada! Vamos embora. Se alguém não vai gostar de mim, só por não ter cabelo, então que seja assim. Não vou ficar por aí bancando o ridículo. Pensa bem, Mário, vai que eu encontre uma mulher legal e ela me conhece com um troço desse aí na cabeça e então a gente se acerta e passa a se ver com freqüência— e ela pensando que eu sou do jeito que ela me vê— aí, um belo dia, a coisa vai engrenando e a gente acaba indo pra cama juntos e eu saio do banheiro de cuecas e ... com o carecão brilhando. O que é que você acha que vai acontecer,hein? Diz aí, vai, você que sempre tem resposta pra tudo. Você acha que ela vai dizer “puxa que surpresa agradável, que bom que você esperou este momento de romantismo para me mostrar essa carequinha linda”, acha? Besteira! Ela vai é rir na minha cara! Se for bem educada, é até capaz de não falar nada, só ficar lá, de olho arregalado, espiando pro alto da minha cabeça e eu sabendo o que ela está pensando...Não compro porcaria de peruca nenhuma e ponto final!  Tá encerrado o assunto! Não se fala mais nisso!
Pela primeira vez a mocinha olhou de verdade para o rapaz. Pela primeira vez, Mário prestou atenção ao que dizia o amigo. Também pela primeiríssima vez, José Augusto Abrantes Junqueira dizia com todas as letras o que pensava e o que queria. Respirou fundo, satisfeito, e sorriu. “Você tem um lindo sorriso!” disse a mocinha, batendo repetidamente os longos cílios.  Reparando melhor, o cabelo não faz falta nenhuma. Até que você é um cara bem interessante.
    Não é preciso falar do espanto de José Augusto. Mulher alguma, a não ser a mãe, lhe dera alguma atenção desde que passara a tomar conhecimento da existência delas, no entanto, a loura sorria-lhe com o mesmo sorriso cheio de promessas que enviara ao bonitão do Mário. Já que estava no embalo, aproveitou a oportunidade.
    Em menos de três meses estavam casados.
E o Mário?
    Bem, o Mário, como foi padrinho de casamento, vai visitá-los com freqüência e, a cada vez, com uma mulher diferente. Afinal, como ele mesmo diria, é um homem originário que não gosta de mornotonia e, sempre que pode, vareia.