16.3.21

 


ODORES

E da cozinha vem o cheiro de linguiça frita, eu, criança, pé no chão, ranho no nariz, cabelo de terra, livre, livre, correndo solta no pasto -potro chucro, vaca parida, cachorro louco. A água do ribeirão molha o corpo nu numa friagem de arrepio “moleque safado, me dá minha roupa, vou conta pro pai”

A ardência doída do cinto nas pernas “te falei pra não nadar pelada com os meninos, sua desavergonhada”, Bonzão o pai, apesar do cinto, apesar do grito... Coisa de cuidados, de querer bem desajeitado – rudeza de homem moldado no barro, educado na sela. “Não come com a mão, sua peste”. “ O pai come...”

Hoje uso garfo e faca e talher de peixe e copo de água, e de vinho, e de conhaque, e licor... Guardanapo de seda no colo. Cotovelos fora da mesa. Boca fechada na mastigação.

Pai – raiz da terra. Lá ficou, eu vim.

E da gaveta do armário vem o cheiro de alfazema – Madre Branca- miudinha, toda clara, perdida entre os folhos escuros do hábito. Mãozinha de dedos afilados – puxão de orelha, carinho na face. “Que lindo bordado! Uma mocinha assim não anda descalça! “ Deixa a menina, irmã Maria, com o tempo aprende:”

E estas toalhas e estes lençóis em crivo, em ponto de cruz, em ponto cheio, são meu orgulho. E uso sapato de verniz, sandália de salto agulha, botas de cano alto. “Moça elegante a do 503.”

Pai cuida da terra. Lá estava. Eu vim.

E do corredor vem o cheiro de pinho. A lua redondando clara, manchando de luz grama e terra; Um beijo. Longo, sedento beijo. E outro. E muitos outros. “Estou ficando sem ar. Meu peito dói, a garganta tá seca.” “Não fala nada, agora não!” A aspereza da barba arranhando meu corpo. O pinheiro tão alto rompendo o céu. Tua carne dura rompendo a minha carne. A emoção e o medo rompendo em pranto. “Chora não, vamos ficar juntos. Vai ser sempre assim, prometo!”

Hoje vais para o trabalho e eu também. Voltamos e mal falamos. Dormimos juntos na cama de casal. Nada é mais como foi.

Pai- semente da terra. Lá ficará. Eu vim.

E pela janela entra o cheiro do mar-navio, viajante querendo traçar o seu próprio destino. A loucura rondando a cabeça. A mulher-animal no cio. O macho rondando a fêmea. A procura dos olhos, das mãos, dos corpos em febre. O jogo. “Larga tudo e vem comigo. Sou teu futuro!”

Arrisquei e perdi. O futuro passou afogado no oceano. Hoje só uma vaga lembrança nesta maresia vespertina.

E do povo vem o cheiro do suor- pai no campo.

E do açougue vem o cheiro do sangue- mães parindo em dor

E minha vida segue nessas sugestões de odores, nas lembranças do passado, naquilo que não há mais.

Preciso olhar ao redor e poder ver. Preciso tocar o presente e poder sentir. Em vez disso...farejo. Cão perdigueiro, busco no ar a vida perdida. À frente o que há?

Pai- fertiliza a terra. Lá dará frutos. Eu vim.

Pra onde? Pra quê? Porém.... Sinto no ar um cheiro de...

 

ROSA MARIA FERRÃO/82

22.11.19

SOB A SUPERFÍCIE FRIA



Vivo como vivem todos. Trabalho. Alguns amigos, inimigos alguns. Companheiros e concorrentes. Como todo mundo.
Vivo como vivem todos.
Como durmo leio jornal vejo tv passeio discuto política e digo bobagens. Como todo mundo.
Faço aconteço digo calo ouço nem tanto nem sempre às vezes muito...
A vida é isso. O resto... bem o resto são acidentes de percurso, não merecem maiores elucubrações.
Vivo como vivem todos, porém tenho medo. Tenho medo que um dia ouças meus pensamentos e me desvendes e me percebas e me sintas...

Foi naquele tempo longe agora e sempre sempre tão próximo porque no coração na lembrança cada vez que faço de recordar.
Aconteceu assim pouco a pouco sem consciência até romper de súbito com susto e gozo com agonia e um não entender de pronto um descobrir o já sabido por dentro um desaguar o represado beijo no meio da sala todo mundo por aí podem ver... O frio no estômago a fraqueza nas pernas zumbido nos ouvidos abelhas douradas luzindo ao sol quente calor no ventre.
Os dedos entrelaçados debaixo da mesa os olhos inocência no teto na comida esfriando no prato na falta de apetite do feijão na fome da solidão.
Beijos molhados no vão da escada mão ansiosas nos caminhos nunca decorados do corpo meu pele estalando em fogo gemidos suspiros pequenas tolices sussurradas os encontros furtivos o agridoce gosto do pecado o prazer do proibido a irresistível atração do não.
            Respeitável público, com vocês o trio indissolúvel!
            Coragem de dissolver? Quem tinha?
            Não tivemos. Ambos. Ela precisa de mim –disseste
            E eu?


Um dia, ao dobrar a esquina, vi tuas costas que se afastavam. Seguiste por uma estrada que não era a minha. Nos perdemos de vista.
Procurei meus caminhos. Levavam a algum lugar? Ignorei as placas de aviso. Fui caminhando esperando sempre sem pensar demais sem sonhar demais receio de acordar—acordando sempre.
Passa o tempo por mim. Coragem de levantar o braço e pedir carona, cadê?
Uso máscara com habilidade e arte. Não mais emoções. Por que sinto tanta falta delas?

Tornamos a nos ver. Puro acidente. Gente gente gente. Olhos vigilantes olhos irônicos olhos vorazes de perceber...Os nossos ignorando-se sonsos na brincadeira de procurar sem intenção chamas atravessando o espaço línguas no corpo em ânsia tensão atenção contenção...
E tudo novamente desaconteceu como deveria ser. Era aconselhável. Nos encontramos. Não nos vimos. Mais uma vez partimos e o tempo correu.

Um vendaval me colheu no caminho. Arrebentou destruiu desabrigou. Destroços desolação dor morte.
Refaço lentamente o meu caminhar por entre as cicatrizes.
Mas a gente esquece ou tenta ou faz que.
E tudo continua fluindo indo escorrendo por entre as feridas. Aguardo o mundo explodir em minha cara num som de vida no gosto da vontade num orgasmo de cores infinitas brilhantes.

Começo a achar que tenho esperado demais...tempo demais. Penso em acender o pavio pressionar o gatilho—provocar a explosão. Constato, entretanto, que continuo na estação aguardando um trem que já partiu.
Esperei tanto para te dizer o que engoli... agora já esqueci o que dizer nem sei se quero.

            A hora era aquela o momento antes o lugar era lá.
            Não soltei o grito de dentro. Que pena, o tempo passou e agora...
            Vivo como vivem todos, porém tenho medo.
            Tenho medo que um dia
            ouças meus pensamentos
            me desvendes me percebas me sintas...
         Como poderei então fingir que não me importo?

ROSA MARIA FERRÃO. Sob a superfície fria.