ODORES
E
da cozinha vem o cheiro de linguiça frita, eu, criança, pé no chão, ranho no
nariz, cabelo de terra, livre, livre, correndo solta no pasto -potro chucro,
vaca parida, cachorro louco. A água do ribeirão molha o corpo nu numa friagem
de arrepio “moleque safado, me dá minha roupa, vou conta pro pai”
A
ardência doída do cinto nas pernas “te falei pra não nadar pelada com os
meninos, sua desavergonhada”, Bonzão o pai, apesar do cinto, apesar do grito...
Coisa de cuidados, de querer bem desajeitado – rudeza de homem moldado no
barro, educado na sela. “Não come com a mão, sua peste”. “ O pai come...”
Hoje
uso garfo e faca e talher de peixe e copo de água, e de vinho, e de conhaque, e
licor... Guardanapo de seda no colo. Cotovelos fora da mesa. Boca fechada na
mastigação.
Pai
– raiz da terra. Lá ficou, eu vim.
E
da gaveta do armário vem o cheiro de alfazema – Madre Branca- miudinha, toda
clara, perdida entre os folhos escuros do hábito. Mãozinha de dedos afilados –
puxão de orelha, carinho na face. “Que lindo bordado! Uma mocinha assim não
anda descalça! “ Deixa a menina, irmã Maria, com o tempo aprende:”
E
estas toalhas e estes lençóis em crivo, em ponto de cruz, em ponto cheio, são
meu orgulho. E uso sapato de verniz, sandália de salto agulha, botas de cano
alto. “Moça elegante a do 503.”
Pai
cuida da terra. Lá estava. Eu vim.
E
do corredor vem o cheiro de pinho. A lua redondando clara, manchando de luz
grama e terra; Um beijo. Longo, sedento beijo. E outro. E muitos outros. “Estou
ficando sem ar. Meu peito dói, a garganta tá seca.” “Não fala nada, agora não!”
A aspereza da barba arranhando meu corpo. O pinheiro tão alto rompendo o céu.
Tua carne dura rompendo a minha carne. A emoção e o medo rompendo em pranto.
“Chora não, vamos ficar juntos. Vai ser sempre assim, prometo!”
Hoje
vais para o trabalho e eu também. Voltamos e mal falamos. Dormimos juntos na
cama de casal. Nada é mais como foi.
Pai-
semente da terra. Lá ficará. Eu vim.
E
pela janela entra o cheiro do mar-navio, viajante querendo traçar o seu próprio
destino. A loucura rondando a cabeça. A mulher-animal no cio. O macho rondando
a fêmea. A procura dos olhos, das mãos, dos corpos em febre. O jogo. “Larga
tudo e vem comigo. Sou teu futuro!”
Arrisquei
e perdi. O futuro passou afogado no oceano. Hoje só uma vaga lembrança nesta
maresia vespertina.
E
do povo vem o cheiro do suor- pai no campo.
E
do açougue vem o cheiro do sangue- mães parindo em dor
E
minha vida segue nessas sugestões de odores, nas lembranças do passado, naquilo
que não há mais.
Preciso
olhar ao redor e poder ver. Preciso tocar o presente e poder sentir. Em vez
disso...farejo. Cão perdigueiro, busco no ar a vida perdida. À frente o que há?
Pai-
fertiliza a terra. Lá dará frutos. Eu vim.
Pra
onde? Pra quê? Porém.... Sinto no ar um cheiro de...
ROSA
MARIA FERRÃO/82
2 comentários:
Eu tenho uns textos que sempre guardei só pra mim. Hoje lembrei de um que também é sobre odores. QQ dia posto. Esse está lindo
Lindo!
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