E eu pergunto: Indiferença é pior que desamor? Estar só
é padecer de solidão? Acomodação é pior do que revolta? Quem decide tudo isso?
Ontem ele me
atirou pro canto feito um sapato velho. Disse uma dúzia de palavrões, bateu a
porta com raiva e saiu do quarto, da casa, da minha vida.
Fiquei pateta,
olho arregalado, língua presa, braço caído, no espanto de nada entender.
Pensar, não
pensei. Não dava. Era tanto barulho! As mãos ansiosas desalinhando o cabelo, as
pernas inquietas a bailar pela sala, o bigode a subir e a descer, a veia
azulando a testa. As palavras e o cuspe caiam sobre o tapete.
Meu Deus, que
cena!
E eu lá, muda,
parva, olhando sem perceber. Depois do estrondo da porta, o silêncio.
Chorar, não
chorei. Não dava. Era muito susto, muito cansaço. Me bateu um vazio!...
À noite fiz o
jantar e pus a mesa pra nós dois. Esqueci! Força do hábito.
Dormi e acordei
sozinha. Não houve diferença. Por que haveria? Há tanto tempo ele não estava
mais aqui.
Vou trabalhar como
sempre, volto, faço compras, o jantar, durmo e acordo. Está bem assim.
Tocam a campainha.
Procuram por ele.
Mudou-se pra onde
não sei. É meu marido, ou foi, eu... eu não sei mais...
Ele agradece e pede
desculpas. Antes de fechar a porta, ainda o ouço murmurar “parece maluca”.
Será? Deveria ter
gritado, chorado, exigido explicações? Deveria ter pedido “pensa melhor, vamos
conversar”, ou coisa assim? Não é desse modo que agem as pessoas normais? Ou
não?
Mais de um mês...
A casa anda em ordem, a roupa limpa, o emprego estável, o serviço em dia. Horas
iguais. Iguais noites e dias, tudo igualmente igual. Tão confortável!
Pensar não penso.
Não quero. Me dá preguiça.
Que aborrecimento!
Carta de mamãe.
Querida filha,
Soube da terrível
(?) notícia por intermédio de tua vizinha. (Ah, vizinhos! Melhor não tê-los...
não é bem assim, mas...) Por que você não me escreveu contando? Imagino que
deves estar sofrendo muito (mamãe sempre teve muita imaginação!), mas não fica
preocupada, já falei com teu pai e vou para aí ficar contigo um tempo e etc
etc...
Ora, ora, ora... E
essa agora?
Vou ligar neste
instante, preciso dizer...
Sim, eu sei, mãe,
eu também te amo, mas tá tudo bem, pode acreditar! É bobagem fazer uma viagem
cansativa dessas por tão pouco. É, eu sei, foi chato mesmo, mas eu já estou
bem, não precisa se preocupar, juro! É, eu prefiro assim. Não, eu não preciso
de nada mesmo. Está certo, beijos em todos.
Bem, até que não
foi tão difícil.
Fui ao
cabeleireiro, almocei num restaurante chique, fui ao teatro e tudo isso porque
hoje é sábado.
Domingo, segunda,
terça, 27, 28, 29, 30. Novembro, dezembro, janeiro.
Dia de feira,
pagamento da faxineira. Três anos hoje, ora vejam só!
Preciso levar
verduras e algumas frutas. É melhor para a pele. Jesus, tudo tão caro!
Eu digo, mamãe
dizia há quarenta anos e, provavelmente vovó antes dela. Carestia hereditária.
Melancia! Adoro melancia, tão fresca, tão colorida!
Leva inteira,
freguesa, tá um mel! Melhor preço da feira.
E aqui vou eu com
melancia pra um mês.
Vou botá as compra
no elevador pra senhora. São cinco prata do carreto.Tão suado, tão pequeno e
raquítico, menino-velho-empurrador-de carrinho-de-feira! Toma lá dez, mas não
acostuma, hein!?
Riso branco na
pele preta: Inté, dona!
Te juro que hoje
eu não saio mais, que canseira!
E a velha da
faxina me olha, cansada. Vai por aí a arrastar móveis, a polir metais, a
esfregar o chão... Entende tudo de cansaço. A vida é uma canseira, moça!
Faço o almoço.
Sentamos à mesa a mastigar silêncio. Ao final da tarde ela se vai.
Tomo o meu banho.
Frio, demorado, abençoado banho... Droga, campainha numa hora destas? Tinha que
ser, é sempre assim! Ah, meu Deus, meu encerado. Um momento, tô indo!
Abro a porta, os
cabelos escorrendo, ensopando o vestido.
Abro a boca. Olá,
é só o que consigo dizer.
Ele entra mudo,
manso, quase a medo. Senta no sofá. O irritante pé sobre a mesinha de centro.
Voltei, diz.
Preciso enxugar
meus cabelos, respondo.
À noite preparo o
jantar e ponho a mesa, só para mim. Esqueci. Força do hábito.
Dormi e acordei
com ele em casa. Não houve diferença. Por que haveria? Continua não estando
aqui!
Vou trabalhar como
sempre. Volto, faço compras, o jantar, durmo e acordo. Está bem assim.
No entanto, algo
me incomoda. Sinto que ele não combina com a decoração e o espaço da casa
parece que diminuiu...
Deveria ter
gritado, batido com a porta em sua cara, exigido explicações?
Não é assim que agem as pessoas
normais? Ou não?
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