1.9.24

 JULIO CORTÁZAR é um autor argentino nascido em 26 de agosto de 1914. Além de escritor, foi professor e tradutor. Por questões políticas, exilou-se na França. Fez parte do Tribunal Internacional dos Crimes de Guerra. Sua obra mais conhecida é O jogo da amarelinha, de 1963. Cortázar ganhou o prêmio argentino Konex, em 1984, e morreu em 12 de fevereiro desse mesmo ano.

O autor faz parte do boom latino-americano, ocorrido em 1960 e 1970. Suas obras são consideradas de alto nível intelectual, experimentais, com engajamento político e marcas do realismo mágico, fantástico ou maravilhoso. Escreveu prosa e poesia, mas é bastante conhecido por seus contos, um dos quais colocamos a seguir. Graças a seu engajamento, tinha a consciência de que o “problema de todo intelectual é um problema de responsabilidade

SIMULACROS

Somos uma família rara. Neste país, onde as coisas são feitas por obrigação ou exibicionismo, gostamos de ocupações gratuitas, as tarefas porque sim, os exercícios que são inúteis.

Temos um defeito: não temos originalidade. Quase tudo o que decidimos fazer é inspirado - digamos, francamente, copiado - de modelos famosos. Se qualquer novidade trazemos é sempre inevitável: os anacronismos ou surpresas, escândalos. Meu tio diz que somos como cópias em papel carbono, idênticas ao original, apenas com outra cor, outro papel, outra finalidade. Minha irmã, a terceira, é como o Rouxinol mecânico de Andersen; seu romantismo chega a dar náusea. Somos muitos e vivemos na rua Humboldt.

Fazemos coisas, mas contá-las é que é difícil porque o que é mais importante fica faltando, a ansiedade e a expectativa de fazer as coisas, as surpresas mais importantes do que os resultados, as falhas em que toda a família cai no chão

como um castelo de cartas e durante dias inteiros não são ouvidos mais do que lamentos e gargalhadas. Contar o que fazemos é apenas uma maneira de preencher os buracos inevitáveis, porque às vezes somos pobres ou prisioneiros ou doentes, às vezes algum morre ou (dói mencioná-lo) trai, renuncia ou é apanhado pela Receita. Mas não devemos deduzir disso que estamos fazendo mal ou que somos melancólicos. Vivemos no bairro de Pacífico e fazemos coisas toda vez que podemos. Somos muitos que têm ideias e desejam colocá-las em prática. Por exemplo, o cadafalso, até hoje ninguém concordou com a origem da ideia, minha irmã, a quinta, afirma que foi um dos meus primos carnais, que são muito filosóficos, mas meu tio, o mais velho, argumenta que isso lhe ocorreu depois de ler um romance com uma capa e espada. No fundo isso pouco importa, a única coisa que vale a pena é fazer as coisas, e é por isso que lhes conto quase sem vontade, apenas para não sentir tão próxima a chuva nesta tarde vazia. A casa tem um jardim na frente, uma coisa rara na rua Humboldt. Não é maior que um pátio, mas está três níveis acima da calçada, o que lhe confere uma vistosa aparência da plataforma, lugar ideal para uma forca. Como o portão é de alvenaria e ferro, pode-se trabalhar sem transeuntes -por estar, por assim dizer, em casa; podem ficar no portão por horas, mas isso não nos incomoda. "Vamos começar com a lua cheia", anunciou meu pai. Durante o dia, íamos procurar madeira e ferro nos corredores da Avenida Juan B. Justo, mas minhas irmãs ficavam na sala praticando os uivos dos lobos, depois que minha tia mais nova argumentou que patíbulos atraem os lobos e os incitam a uivar para a lua. Meus primos, foram encarregados do fornecimento de pregos e ferramentas ; Meu tio, o mais velho, desenhou os planos, discutiu com minha mãe e meu segundo tio a variedade e a qualidade dos instrumentos de tortura. Lembro -me do final da discussão: eles decidiram por uma plataforma bastante alta, na qual uma forca e uma roda subiriam, com um espaço livre para torturar ou decapitar de acordo com os casos. Para meu tio parecia isso muito mais pobre e pior que sua ideia original, mas as dimensões do jardim da frente e o custo dos materiais sempre restringem as ambições da família.

Começamos a construção em uma tarde de domingo, depois do ravioli. Embora nunca nos tenhamos preocupado com o que os vizinhos podem pensar, era evidente que os poucos bisbilhoteiros acreditavam que iríamos levantar uma ou duas peças para ampliar a casa. O primeiro a se surpreender foi Don Cresta, o velho na frente, e veio perguntar por que instalamos uma plataforma assim. Minhas irmãs se reuniram em um canto do jardim e lançaram alguns uivos de lobo. Muitas pessoas estavam ali amontoadas, mas continuamos trabalhando até à noite e terminamos a plataforma e as duas escadas (para o padre e a pessoa condenada, que não devem subir juntos). Na segunda-feira, uma parte da família foi a seus respectivos empregos e ocupações, já que de algo se deve morrer, e os outros começaram a elevar a forca enquanto meu tio, o mais velho, consultava desenhos antigos para a roda. Sua ideia consistia em colocar a roda o mais alto possível em uma estaca ligeiramente irregular, por exemplo, um álamo bem popular. Para agradá-lo, meu irmão o segundo e meus primos carnais saíram com o caminhão para procurar um álamo; enquanto isso, meu tio, o ancião, e minha mãe encaixavam os raios da roda no cubo, e eu preparei as algemas de ferro. Naquela época, nos divertimos muito porque se ouvia o martelar em todos os lugares, minhas irmãs uivavam na sala, os vizinhos empilhados na cerca trocando impressões, e entre o púrpura e o rosado do pôr do sol subiu o perfil da forca e via-se meu Tio mais novo a cavalo na trave para consertar o gancho e preparar o nó deslizante.




A essa altura, o povo da rua não conseguia deixar de perceber o que estávamos fazendo, e um coro de protestos e ameaças nos encorajou a terminar o dia com a montagem da roda. Alguns infelizes tentaram impedir que meu irmão, o segundo, e meus primos entraram com o magnífico tronco de álamo que trouxeram no caminhão. Foi iniciada uma operação por toda a família que, tirando-o disciplinadamente, colocou -o no jardim junto com uma criança agarrada às raízes. Meu pai pessoalmente devolveu a criatura para seus pais exasperados, passando educadamente pelo portão e, embora a atenção estivesse concentrada nessas alternativas sentimentais, meu tio mais velho, ajudado por meus primos carnais, aqueceu a roda em uma extremidade do tronco e começou a erguê-la. A polícia chegou no momento em que a família reunida na plataforma, comentava favoravelmente sobre a boa aparência da forca. Somente minha terceira irmã permaneceu perto da porta e teve que dialogar com o subcomandante pessoalmente; não foi difícil convencê-lo de que trabalhávamos em nossa propriedade, em uma obra que, apenas se fosse usada, poderia ter caráter inconstitucional e que o murmúrio do bairro era filho de ódio e frutos da inveja. O cair da noite nos salvou de outra perda de tempo.

À luz de uma lâmpada de carboneto, jantamos na plataforma, espiada por uma centena de vizinhos rancorosos; nunca o pombo marinado pareceu mais saboroso, e mais negro e doce o vinho. Uma brisa do norte balançou suavemente a corda da forca; uma ou duas vezes, a roda apertou, como se os corvos já tivessem posado para comer. Os observadores começaram a sair, murmurando ameaças vagas; amontoados ao portão, havia vinte ou trinta deles que pareciam esperar algo. Após o café, desligamos a lâmpada para dar lugar à lua que subiu pelos balaústres do terraço, minhas irmãs uivaram e meus primos e tios percorreram lentamente a plataforma, fazendo as fundações tremerem com seus passos. No silêncio que se seguiu, a lua veio iluminar o nó deslizante e, na roda, uma nuvem de bordas prateadas parecia brilhar. Nós olhamos para eles, tão felizes que era um gosto, mas os vizinhos murmuraram no portão, como na beira de uma decepção. Acenderam os cigarros e saíram, alguns apressados e outros mais lentamente. Se aquietou a rua, um apito do vigilante ao longe e o coletivo 108 que passava de vez em quando; nós já tínhamos ido dormir e sonhamos com festas, elefantes e vestidos de seda.

JULIO CORTÁZAR. In: Cronopios e Famas (1962)

16.3.21

 


ODORES

E da cozinha vem o cheiro de linguiça frita, eu, criança, pé no chão, ranho no nariz, cabelo de terra, livre, livre, correndo solta no pasto -potro chucro, vaca parida, cachorro louco. A água do ribeirão molha o corpo nu numa friagem de arrepio “moleque safado, me dá minha roupa, vou conta pro pai”

A ardência doída do cinto nas pernas “te falei pra não nadar pelada com os meninos, sua desavergonhada”, Bonzão o pai, apesar do cinto, apesar do grito... Coisa de cuidados, de querer bem desajeitado – rudeza de homem moldado no barro, educado na sela. “Não come com a mão, sua peste”. “ O pai come...”

Hoje uso garfo e faca e talher de peixe e copo de água, e de vinho, e de conhaque, e licor... Guardanapo de seda no colo. Cotovelos fora da mesa. Boca fechada na mastigação.

Pai – raiz da terra. Lá ficou, eu vim.

E da gaveta do armário vem o cheiro de alfazema – Madre Branca- miudinha, toda clara, perdida entre os folhos escuros do hábito. Mãozinha de dedos afilados – puxão de orelha, carinho na face. “Que lindo bordado! Uma mocinha assim não anda descalça! “ Deixa a menina, irmã Maria, com o tempo aprende:”

E estas toalhas e estes lençóis em crivo, em ponto de cruz, em ponto cheio, são meu orgulho. E uso sapato de verniz, sandália de salto agulha, botas de cano alto. “Moça elegante a do 503.”

Pai cuida da terra. Lá estava. Eu vim.

E do corredor vem o cheiro de pinho. A lua redondando clara, manchando de luz grama e terra; Um beijo. Longo, sedento beijo. E outro. E muitos outros. “Estou ficando sem ar. Meu peito dói, a garganta tá seca.” “Não fala nada, agora não!” A aspereza da barba arranhando meu corpo. O pinheiro tão alto rompendo o céu. Tua carne dura rompendo a minha carne. A emoção e o medo rompendo em pranto. “Chora não, vamos ficar juntos. Vai ser sempre assim, prometo!”

Hoje vais para o trabalho e eu também. Voltamos e mal falamos. Dormimos juntos na cama de casal. Nada é mais como foi.

Pai- semente da terra. Lá ficará. Eu vim.

E pela janela entra o cheiro do mar-navio, viajante querendo traçar o seu próprio destino. A loucura rondando a cabeça. A mulher-animal no cio. O macho rondando a fêmea. A procura dos olhos, das mãos, dos corpos em febre. O jogo. “Larga tudo e vem comigo. Sou teu futuro!”

Arrisquei e perdi. O futuro passou afogado no oceano. Hoje só uma vaga lembrança nesta maresia vespertina.

E do povo vem o cheiro do suor- pai no campo.

E do açougue vem o cheiro do sangue- mães parindo em dor

E minha vida segue nessas sugestões de odores, nas lembranças do passado, naquilo que não há mais.

Preciso olhar ao redor e poder ver. Preciso tocar o presente e poder sentir. Em vez disso...farejo. Cão perdigueiro, busco no ar a vida perdida. À frente o que há?

Pai- fertiliza a terra. Lá dará frutos. Eu vim.

Pra onde? Pra quê? Porém.... Sinto no ar um cheiro de...

 

ROSA MARIA FERRÃO/82